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O marco legal do saneamento aprovado no Senado Nacional trouxe à tona um dos temas mais perturbadores ao Brasil, País de imensa relevância ambiental, política e econômica: a falta de saneamento básico e acesso à água tratada.
Segundo dados do IBGE, quase metade da população brasileira não tem acesso à água potável e saneamento básico. Nossas megacidades, em sua quase totalidade ancoradas na região litorânea, despejam centenas de milhares de litros de esgotos em águas continentais, cujo destino final é adentrar mares e baías, que sofrem há décadas com a falta de regulamentação e fiscalização. Em um retrospecto histórico, a ausência de interesse do poder público na implementação de sistemas de saneamento no País remonta ao Brasil colônia e a triste memoria dos escravos “tigres”, marcados na pele pelo transporte dos dejetos urbanos.
Avançamos pouco desde então no acesso à água, recurso de valor incalculável, e menos ainda no planejamento do tratamento de resíduos. A resposta a isso são os inacreditáveis números de doenças vinculadas ao acesso à água de qualidade e ao saneamento básico, que assola boa parte da população em todos os estados brasileiros.
São inúmeros os exemplos de desigualdades na distribuição de água nos milhares municípios brasileiros. Manaus, por exemplo, “hoje sofre a consequência mais paradoxal da liberalização: não ter água na maior bacia de água doce do mundo”. Isso será corrigido com uma “privatização”? Essas desigualdades serão minimizadas? Interessa aos interesses econômicos? Por outro lado, algumas cidades do interior de São Paulo são servidas há anos por serviços privados de distribuição e tratamento de esgotos, mas em um contexto social e econômico muito singular.
A discussão sobre a privatização do serviço de oferta de água e saneamento se arrasta há décadas, mas surpreendentemente avançou rapidamente durante a maior pandemia global e o isolamento social, e culminou na aprovação de um novo marco regulatório. Com o fim da exclusividade das empresas estaduais, caberá a iniciativa privada o planejamento das ações de coleta de esgoto e a distribuição de água. Convivendo com uma assombrosa desigualdade social e econômica, o país assiste à replicação dos modelos pontuais apresentados como iniciativas de “sucesso”, esquecendo que nos caminhos longínquos do Brasil profundo, a água-cidadania pode se esvair em interesses que não vislumbram essa dimensão humana.
Um outro ponto que demonstra nosso atraso ao enfrentar as necessárias soluções para os diversos problemas de saneamento, é a ausência no novo marco regulatório de qualquer menção às “soluções baseadas na natureza”, que vem a ser a grande esperança para enfrentar a emergência climática. Para termos água temos que ter rios vivos! Temos que repensar nossa relação com a natureza. E enquanto diversos países já entenderam que a água é um bem da humanidade, e que para termos água de qualidade temos que renaturalizar os rios, desenvolver e implementar projetos de biotecnologia para tratamento dos nossos dejetos, o novo marco legal do saneamento deixou de fora tais inovações para o país.
Por outro lado, em 2017 estudos já demonstravam a quantidade de regiões e municipalidades em diversos países que decidiram pela "remunicipalização", ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. Segundo a autora do estudo "em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso"[3].
Dados disponibilizados no Atlas Geoquímico da Bacia do Rio Doce (CPRM, 2016) e no Relatório Anual do Projeto de Monitoramento da Biodiversidade Aquática da Rede Rio Doce Mar, revelam a avassaladora quantidade de elementos orgânicos e inorgânicos arrastados nas aguas do Rio Doce, incluindo Nitrogênio, Fósforo, Ferro, Alumínio, Vanádio, entre outros. Em contínuo movimento, unificando paisagens, pessoas e realidades, nossos rios-tigres continuam no trajeto horizontal de deposição de águas cinza, vermelhas e multicores, que se misturam nas águas do nosso litoral. Inevitavelmente, nossos rios conectam nossas vidas e nossas paisagens.
Sob esse contexto, a aprovação do marco legal do saneamento, particularmente no momento em que nos distanciamos forçosamente, nos alija da participação mais efetiva na discussão de um assunto tão sensível e imprescindível à nossa vida. Uma observação do sociólogo Gilberto Freyre revela que a presença dos escravos tigres atrasou consideravelmente o planejamento sanitário no Brasil. Em pleno século XXI, os nossos rios-tigres parecem confirmar nosso triste destino.
Convidada: Eneida Eskinazi Sant’Anna
Eneida é Bióloga, Mestre em Ciências da Engenharia Ambiental (EESC/USP) e Doutora em Ecologia (IB/USP). Professora da UFOP na área de Ecologia Aquática.
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