Por: Patricia Furtado de Mendonça, fundadora da Acqua Mater.
No final de fevereiro, Bárbara Veiga me convidou para fazer uma intervenção poético-artística durante a comemoração dos 2 anos da Liga, que, não casualmente, aconteceria no Dia Internacional da Mulher. Ela queria trazer “calor” ao evento, ares de afeto e conexão genuína por meio de algum tipo de comunicação mais “sensível”, que falasse ao coração de cada mulher ali presente. Disse que já tínhamos a imensa Ná Ozzetti confirmada, que nos cantaria o (A)MAR que nos une.
Que honra a minha! E que desafio!
O que fazer??
Como deslocar suas águas internas na imobilidade que as obrigaria a estar ali, sentadas, com os olhos fixos naquela janela - dividida em tantas outras janelinhas - que nos permite olhar umas às outras, mas sem o calor que eu precisaria despertar?
Eu entraria em cena antes ou depois do “canto da sereia” ?
Depois. Ufa!
Ná Ozzetti aqueceria as águas, e me daria autorização para passar.
Obrigada, Yemanjá!
Pensei em escrever e ler um texto, quase uma oração, que buscasse conectar os mares que carregamos, somos e navegamos, conduzindo o cardume rumo ao final da nossa viagem de celebração.
Juntei algumas conchas que já tinha, umas mensagens de velhas garrafas de vidro lançadas ao mar, fiz novas costuras com velhas redes de pesca e criei o cenário para nossa viagem.
Antes de começar, como num pequeno ritual simbólico, pedi que “atualizassem o mar em si” provocando os sentidos: vendo a vastidão de seus azuis pela tela dos olhos, ouvindo o rugido de suas ondas, deixando o cheiro da maresia penetrar as narinas e imaginando a sensação de suas águas escorrendo pelo corpo. Todas - ou quase todas - tinham ao lado um copo com água e sal marinho. Pedi que tocassem essa água com os dedos e os levassem à boca, para sentir o gosto do sal na língua.
Costumamos mergulhar no mar, mas também podemos deixar o mar mergulhar em nós!
Pedi que fechassem os olhos. E li, com aquele jeitinho meio atrevido que o teatro me ensinou:
“Eu queria convidar vocês, mulheres da Liga, a fazer uma brevíssima viagem comigo rumo ao oceano que habita as águas que navegam cada uma de nós. Queria puxar pelo fio de uma memória que o inconsciente alcança, que nossos sonhos revelam, que nossas células conhecem – ainda que o novelo do tempo o tenha tornado invisível aos olhos, e impalpável aos nossos dedos vorazes e sedentos para reconstruir a tessitura da nossa História nesse planeta.
Nós podemos até não ver, não sentir. Mas o Oceano das nossas origens sobrevive em nós, é sangue azul que corre em nossas veias, pois a composição do plasma sanguíneo é muito parecida com a da água do mar! Nosso coração pulsa como as medusas, nossos rins filtram nossas águas como as esponjas marinhas filtram a água do mar. Nossos órgãos são os organismos marinhos complexificados pelas labirínticas curvas da chamada “Evolução”.
Sim! Porque para que houvesse vida animal na terra, nossos antepassados saíram da água carregando o mar dentro de si. Somos um Oceano verticalizado, um aquário ambulante que leva o mar para passear. Nossa pele nada mais é do que uma zona costeira entre-mundos. Ela existe para não deixar o mar transbordar de vez de dentro da gente...
Percebo uma espécie de ‘fio de Ariadne’ que parte invisivelmente do meu umbigo e me liga à primeira célula viva do oceano primordial, atravessando as espirais do tempo e do espaço e me conectando ao início de tudo. E na direção contrária, nesta travessia de trás para frente, esse fio acumula uma série de registros de vida que passam então a me pertencer. São essas águas do passado que chegam até mim, preenchem minhas células e se constituem como memória, deixam rastros indeléveis na minha psique, na zona mais profunda e obscura do meu inconsciente, e conectam a minha história à história de vocês, e também à história de toda a humanidade. Temos um passado comum, e é esse oceano de memórias que nos liga inexoravelmente umas às outras. As águas que me atravessam e habitam são as mesmas águas que atravessam e habitam cada uma de vocês, são as águas do início e do fim de tudo, as águas do nascimento e da morte. O que pertence unicamente à nossa individualidade é apenas uma gota deste imenso oceano.
Quando uma mulher gera e pari um filho, ela permite que o mar das origens transborde em onda sobre a terra para irrigar um novo mundo. A continuidade da vida é esse oceano primordial que não para de jorrar em cada uma de nós.
Antes de vir ao mundo, todo ser humano habita o útero de uma mulher, vive no mar interno do ventre de sua mãe. E aquelas águas ocupavam nossos espaços aéreos internos antes que passássemos a beber e a respirar o Oceano também fora dali.
E hoje, dia 8 de março, as águas do útero de Gaia celebram o segundo aniversário da Liga dessas 2000 Mulheres ligadas umas às outras pela paixão, pelo amor e pela dedicação da vida ao mar, e que, juntas, representam o inteiro Oceano das nossas origens.
Porque nós, da Liga, Somos Oceano!”
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