Por Linda Waters
O Blue Hole (buraco azul) Taam ja’, localizado na Baía de Chetumal, na costa do México, foi recentemente considerado o mais profundo do mundo. Um grupo de cientistas do ECOSUR, no México, chegou ao limite do cabo antes que o seu perfilador CTD (sigla para um aparelho medidor de condutividade, temperatura e pressão na coluna de água) chegasse ao fundo. No entanto, o CTD foi capaz de medir 420 m de profundidade máxima antes disso! Em uma expedição anterior, mapearam o blue hole com 151 m de diâmetro ao longo do eixo mais largo e recolheram amostras de suas características químicas. Uma das descobertas mais interessantes foi que nas profundidades mais baixas alcançadas, a salinidade e a temperatura aumentaram até um nível que sugere uma ligação com as águas oceânicas próximas. Como oceanógrafa e exploradora de cavernas, esta nova descoberta é muito interessante para mim.
Primeiro, vamos analisar isso do ponto de vista da espeleologia, ou seja, o estudo das cavernas. Nas regiões de karst, a topografia é determinada pela rocha sendo lentamente dissolvida pela água. É provável que esta formação tenha ocorrido durante o período de glaciação quaternário, a série de períodos glaciais-interglaciais, que começou há cerca de 2,58 milhões de anos até o período atual. Nos períodos em que o nível do mar estava muito mais baixo nesta região durante a glaciação, esta área estava acima da linha de água. Quando as geleiras começaram a derreter, o escoamento dissolveu lentamente o gesso que escorria pela rocha, criando uma rede de cavernas. Às vezes, uma das câmaras da caverna torna-se tão grande que o peso da rocha acima provoca um colapso, criando um buraco. Posteriormente, o nível do mar subiu para o que temos agora, inundando esta região e transformando o que era uma dolina (“sinkhole”) em um “blue hole”. Quando um sistema de cavernas está em terra, entramos e mapeamos o sistema, mas debaixo d'água, esta é uma investigação muito mais complicada e lenta.
Então, primeiro, vamos considerar por que os pesquisadores não conseguiram chegar ao fundo do buraco primário ou procurar entradas para os túneis da caverna, teoricamente conectados. Levar um CTD com 500 m de cabo ou mais para aquele local é difícil devido ao tamanho e peso do equipamento. A maioria das águas circundantes da Baía de Chetumal têm profundidades entre 2 e 6 m. Um navio de pesquisa típico, totalmente equipado com um guincho em uma estrutura em “A” para abaixar um CTD, normalmente tem um calado (ou seja, a parte da embarcação que fica submersa) de aproximadamente 5 m, então os pesquisadores precisariam de algo menor. Usar um barco menor traz problemas de espaço, já que os cabos e carretéis do guincho são pesados e grandes (mais de 300 kg até mesmo para 500 m), limitando o comprimento máximo do cabo que você pode operar com segurança, sem puxar o barco ou ser incapaz de enrolar o cabo de volta. Isso traz à tona outro problema. Este instrumento estava sendo baixado em um espaço confinado. À medida que a passagem se torna mais estreita, o cabo começa a roçar nas paredes próximas. À medida que o CTD descia, desviou-se da vertical, então os 500 m de cabo deixaram o instrumento descer até apenas 420 m.
O próximo passo lógico seria usar um ROV (Remotely Operated Vehicle), mas novamente isto traz alguns desafios a serem superados. Há vários anos, tenho trabalhado em águas profundas usando uma variedade de instrumentos, sistemas de câmeras submersas e sistemas ROV. Falando por experiência própria, o cabo umbilical conectado corre alto risco de ficar preso. A profundidade em questão está além do limite dos pequenos sistemas ROV disponíveis no mercado. A melhor chance de chegar ao fundo é formar uma parceria com um dos poucos grupos de mapeamento de cavernas que já vem criando sistemas de múltiplos estágios e múltiplos ROVs para permitir que um dos dois ou três ROVs desobstrua o cabo dos outros. Usar um ROV também permite o controle direcional, se as correntes inferiores forem altas.
Pensando em um ROV teórico sendo baixado no Taam Ja’, o que iríamos encontrar? Começando pelas águas turvas e salobras da baía, o ROV desce até 4-5 m e encontra a boca do blue hole. Num ambiente marinho, seria de esperar que uma área perto da boca como esta contivesse corais ou esponjas. No entanto, este ambiente salobro é, ao invés disso, coberto por rochas e pequenos “vermes” de 1-2 cm (ainda não identificados pela equipe de investigação que explora a área), além de biofilmes (que podem ser compostos por bactérias, fungos, protozoários e algas), que podem ser observados nas fotos retiradas de artigos relacionados à descoberta. Perto da superfície do Taam Ja’ a água é muito mais clara, coincidindo com uma queda na clorofila-a, que indica alta produção fitoplanctônica.
Foto: Fig 3, Alcérreca-Huerta et al. 2023. “First insights into an exceptionally deep blue hole in the Western Caribbean: The Taam ja’ Blue Hole”.
Descendo ainda mais, a salinidade aumenta e a temperatura cai, à medida que nosso veículo teórico passa abaixo da profundidade de ~6 m, passando a primeira das quatro picnoclinas, camadas de água onde a densidade da água aumenta devido às diferenças de salinidade e temperatura. Uma vez atingidos os 80 m, o aumento da salinidade e a diminuição da temperatura também coincidem com a camada anóxica. Abaixo disso, a vida marinha não sobreviveria, apenas bactérias, e seria de se esperar que eventuais fósseis estivessem bem preservados. A esta profundidade, este ambiente também se torna mais ácido, provavelmente induzindo efeitos corrosivos nos componentes metálicos do nosso veículo teórico, junto com outras mudanças químicas comuns de serem observadas. Esta seria uma boa região para estudar comunidades bacterianas, já que bactérias heterotróficas que favorecem a acidificação foram propostas como prováveis microrganismos vivendo nestes ambientes. A segunda picnoclina a ~246 m é semelhante à profundidade máxima medida pela primeira equipe de investigação do ECOSUR, indicando que o seu ecobatímetro detectou o fundo porque a passagem contínua era inclinada em vez de vertical ou devido aos efeitos de reflexão da mudança da massa de água. Além deste ponto, o CTD utilizado desceu em um ângulo de mais de 32 graus, o que provavelmente indica que a passagem estava inclinada, como seria de esperar de uma passagem contínua na caverna, ou que o aparelho sofreu o efeito de correntes de água mais profundas.
A possibilidade das correntes foi levantada porque na parte mais funda do perfil do CTD registrado, a temperatura subiu mais de 4°C e a salinidade aumentou para ~37, que é uma faixa de salinidade e temperatura esperada das águas marinhas próximas da massa de água Carribean Coastal Water, observada na costa da região no mar aberto. Isto sugere que existe uma possível ligação entre os túneis subaquáticos do fundo deste buraco e o oceano costeiro!
Essa discussão pode fazer você se perguntar como essa descoberta difere das “buracas” de Abrolhos que vêm sendo exploradas por alguns membros do nosso grupo de pesquisa, em parceria com outras universidades. As buracas são depressões em forma de taça no fundo do mar em Abrolhos, Bahia, encontradas entre 24 a 65 m de profundidade. As aberturas dessas depressões têm dezenas de metros ao invés dos 151 m de diâmetro do buraco Taam Ja’. Um dos dois métodos de formação propostos para as buracas é o mesmo do Taam Ja’: durante os períodos de nível mais baixo do mar da glaciação quaternária, a água erodiu a rocha subjacente para criar buracos, agora inundados.
A vida marinha associada às buracas é diferente perto da sua borda. Os mergulhadores que fizeram a pesquisa sugerem uma técnica de “seguir os peixes” para encontrar a localização precisa da buraca, já que os peixes, arraias e lagostas tendem a usar a estrutura rochosa mais escura como proteção, resultando em uma área próxima à superfície e repleta de vida. Como essas buracas estão em uma região de água marinha, o entorno possui algas coralinas, corais ou esponjas. Dentro dos buracos, o ambiente químico torna-se mais ácido com a profundidade, juntamente com um provável aumento de sulfeto, sugerido pela presença de bactérias associadas a ambientes ricos em sulfeto. A parte mais profunda destes buracos também é considerada inóspita para organismos biológicos, assim como foi observado para o Taam Ja’. Os mergulhadores relatam ardor nos olhos à medida que descem, com o metal corroendo rapidamente e o cheiro de metano aparecendo na superfície. Estes buracos tendem a acumular material orgânico numa área que de outra forma seria oligotrófica (ambientes pobres em nutrientes), tornando-os hotspots para a biodiversidade e a produtividade da região.
Muita investigação ainda é necessária no Taam Ja’ para entender este ambiente tão curioso. Estou particularmente interessada nos resultados que eles irão obter a respeito das bactérias, porque acho que pode render informações valiosas sobre organismos extremófilos, que moram em ambientes extremos, com implicações nas áreas de astrobiologia e medicina, por exemplo. Considerando as condições químicas do Taam Ja’, que são raramente observadas em áreas acessíveis dos oceanos, devemos ficar atentos às pesquisas neste ambiente no futuro!
Foto: Fig. 4 Bastos et al., 2013. “Buracas: Novel and unusual sinkhole-like features in the Abrolhos Bank.”
Referências
1. Alcérreca-Huerta Juan Carlos, Reyes-Mendoza Oscar F., Sánchez-Sánchez Joan A., Álvarez-Legorreta Teresa, Carrillo Laura. 2024. "Recent records of thermohaline profiles and water depth in the Taam ja’ Blue Hole (Chetumal Bay, Mexico)", Frontiers in Marine Science, v11, https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmars.2024.1387235
2. Alcérreca-Huerta Juan C., Álvarez-Legorreta Teresa, Carrillo Laura, Flórez-Franco Laura M., Reyes-Mendoza Oscar F., Sánchez-Sánchez Joan A. 2023. "First insights into an exceptionally deep blue hole in the Western Caribbean: The Taam ja’ Blue Hole", Frontiers in Marine Science, v 10, https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmars.2023.1141160
(foto1)
3. Alex C. Bastos, Rodrigo L. Moura, Gilberto M. Amado-Filho, Danielle P. D'Agostini, Nélio A. Secchin, Ronaldo B. Francini-Filho, Arthur Z. Güth, Paulo Y.G. Sumida, Michel M. Mahiques, Fabiano L. Thompson, 2013. Buracas: Novel and unusual sinkhole-like features in the Abrolhos Bank, Continental Shelf Research, v 70 (118-125), https://doi.org/10.1016/j.csr.2013.04.035.
(foto 2)
Linda Waters possui graduação em Zoologia e Física pela Universidade da Flórida, EUA. Entre a graduação e a pós-graduação, trabalhou como cientista ambiental (modelagem de fluxos atmosféricos e oceanográficos), cientista da computação (análise de redes WAN) e técnica em comportamento animal (estudando primatas de Madagascar). Obteve seu Ph.D. em Ciências Marinhas sob a orientação do Dr. Thomas Wolcott na North Carolina State University, EUA, desenvolvendo instrumentos (mini robôs) com comportamento semelhante ao do plâncton. Após auxiliar em alguns trabalhos de campo em Abrolhos, mudou-se para o Brasil em 2015 para um pós-doutorado com o Dr. Alex Turra nos recifes de águas rasas do IO-USP. Em seguida (2018), passou para seu atual pós-doutorado com o Dr. Sumida do IO-USP, onde realiza um trabalho de caracterização ambiental de corais em águas profundas na Bacia de Santos e Campos. É especialista em instrumentação, fotogrametria e integração de dados biológicos, físicos e químicos. Seus projetos atuais incluem a automação de reconstruções 3D de recifes profundos, a instalação de um observatório no mar profundo na Bacia de Campos, análise das correntes de fundo que afetam esses recifes, além de contribuir com outros projetos de imageamento do fundo marinho na margem equatorial do Brasil e na Antártica.
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