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Diário de Bordo: o tempo diferente no mar

Pacífico sul, 13 de maio de 2023: Depois de 14 dias cruzando o Oceano Pacífico, achei que avistar terra fosse me dar alguma sensação de segurança. Mas essa ilha é tão pequena e rebaixada, que a impressão é estar vendo uma folha de papel em cima d´água. Não sei se é porque faz tempo que eu não vejo outras cores, mas o verde dos arbustos é o verde mais saturado que já vi na minha vida.

Encontro esse trecho em meu diário de bordo, depois da longa travessia entre Galápagos e as primeiras ilhas da Polinésia, durante a expedição Voz dos Oceanos – uma iniciativa liderada pela Família Schurmann, com o objetivo de gerar conscientização sobre a poluição plástica nos oceanos.


A oceanografia já tinha me permitido conhecer a liberdade que existe perto da água salgada. Antes da expedição, passei anos me apaixonando por viver em ilhas – um pedaço de terra com pouca gente e muito vento. Pouca internet e muito sol. Um lugar que reduz a capacidade de uma câmera de capturar certas grandezas. Um lugar onde não é preciso correr, nem estar tanto no controle. Um lugar onde a simplicidade basta porque ela é tão bonita. E quando tive a oportunidade de embarcar no veleiro Kat e conhecer as ilhas que moravam no lado mais impossível do meu sonho, a certeza desse amor só cresceu.


Mas depois de 7 meses no mar e 8.230 milhas náuticas navegadas, ficou claro que a liberdade aumenta quanto mais longe da costa você vai – especialmente quando se é mulher. O desconforto de sangrar em um barco em constante movimento fica pequeno quando comparado a sensação de segurança em relação ao nosso próprio corpo, mesmo em meio a uma tempestade. Durante a última travessia entre Fiji e Nova Zelândia, enfrentamos uma situação de emergência – água entrando no barco por dentro do casco, parafuso por parafuso estourado pela pressão da quilha, vela rasgada pela pressão do vento, passaportes e suprimentos estocados em bolsas-estanque. E mesmo assim, já me senti em maior perigo com ambos os pés em terra, em uma noite qualquer de São Paulo.


É muito mais fácil ser mulher em alto mar. Quando se elimina nosso estado de constante atenção aos perigos humanos, sinto que temos muito mais espaço para nos afeiçoar das incertezas e, assim, restabelecer nossa conexão com tudo que nos rodeia. Tenho aprendido que é assim que se aproveita o mundo da maneira certa: abraçando os seus mistérios.


Depois de um tempo, o barco vira a delimitação do nosso próprio corpo. E nos vestimos com a permissão de não saber exatamente quando iremos chegar. Essa passagem no diário de bordo me lembra instantaneamente do nosso capitão Wilhelm, olhando com total atenção a todas as previsões de tempo disponíveis e planejando as manobras de vela necessárias para as próximas horas, mas sem nenhuma pretensão de assumir o que ia acontecer daqui a 5 dias. Essa foi uma quebra tão violenta ao que estamos acostumados, que me levou um tempo para me permitir, também, a não saber qual a data de chegada.


A partir do momento que se aceita ser movido por algo que está fora do seu controle, algo muito bonito acontece: ao invés do medo do desconhecido, nasce uma certa segurança de que também pertencemos a esse reino de mistérios e nos moveremos de acordo com a natureza da qual somos parte. Como mulher, não há nada mais libertador do que poder se despir dos medos que se somam ao nosso gênero, e se deixar navegar pelas metamorfoses do céu e do mar. E, como ser humano parte de um sistema que nos afasta cada vez mais de nossa essência, não há nada mais disruptivo do que passar horas e horas só aproveitando a vista, sem culpas, sem preocupações com horário, sem produzir nada a ser capitalizado. Esse “fazer nada” que nos acompanhava durante as velejadas, na verdade era muito bem preenchido com o que restava – a vida.


Mas talvez o mais bonito de tudo, foi aprender que o temor do desconhecido não faz morada definitiva em pessoas que aceitam os ciclos da natureza e se veem como parte dela. Sentimos isso no barco, mas tivemos a prova concreta ao pisar em diversas ilhas e conhecer as pessoas que habitam esses pequenos paraísos no meio do oceano. Muitos deles estão enfrentando perigos iminentes por conta do aumento do nível do mar, sendo os primeiros a sofrerem consequências de ações que vêm de muito longe. Para nossa surpresa, a atitude perante os riscos não é de desespero nem tristeza. Existe um alarde, uma preocupação, não quero romantizar nada, mas eles têm uma profunda confiança em sua relação com a natureza. Que enquanto ela continuar provendo magia, e fazendo o mundo renascer a cada noite, eles continuarão ali, fazendo o que precisa ser feito com um sorriso no rosto. E essa perspectiva permeia todos os aspectos de suas vidas.


Ter um relógio é diferente do que ter tempo. Aqui temos tempo, escutei de um polinésio que fizemos amizade na ilha de Mangareva. Saber que esse tipo de pensamento existe também em terra firme – não somente durante uma velejada, foi um ponto de não retorno. Ficou difícil voltar. Voltar à cidade, às ideias estranhas de sucesso, ao desconforto de andar na rua vestido. As vezes fecho os olhos e só consigo escutar o barulho das ondas batendo no casco, sentir o vento gelado no rosto e meu corpo indo para lá e para cá tentando acompanhar o movimento do barco. Parece que existe um abismo entre a vida que conhecemos e a vida que nos espera de volta. E me sinto nadando contra a corrente tentando sobrepor essa nova forma de enxergar a vida em cima da antiga. 


Cruzar um oceano inteiro faz você perceber o quanto o planeta é grande e desconhecido. Mas ao mesmo tempo, se percebe o quanto ele também nos pertence. Morremos de medo de ter que redescobrir o mundo (como se já tivéssemos descoberto tanta coisa), e assim não nos permitimos o mergulho naquilo que poderia nos transformar e nos dar armas para enfrentar a crise planetária que vivemos hoje. Gostaria que todas as mulheres pudessem sentir a liberdade de estar no meio do mar, e que todos pudessem dar voltas ao mundo velejando para perceber que não existem fronteiras – nem físicas, nem aquelas que construímos entre uns aos outros, entre nós e a natureza e dentro de nós mesmos. Mas, sabendo que nem todos podem, e entendendo o tamanho do privilégio que me foi presenteado, começo a compartilhar essa experiência oceânica por aqui.



Sobre a autora:


Katharina é uma oceanógrafa dedicada a comunicar a importância do oceano por meio do storytelling através de diferentes formatos de mídia. Formada pela Universidade de São Paulo, iniciou sua carreira na comunicação científica junto à Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano, realizando diversos projetos no audiovisual, sendo o de maior alcance o documentário Mar Brasileiro, onde atuou como apresentadora. Atualmente trabalha como criadora de conteúdo para a Voz dos Oceanos, tendo participado da primeira etapa da expedição internacional a bordo do veleiro Kat.

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