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ERRATA - O capítulo que faltou no livro sobre peixes recifais brasileiros

Por Bárbara Pinheiro


Vocês sabiam que tem algumas espécies de peixes recifais que nascem fêmeas e ao chegarem na idade adulta mudam de sexo e se tornam machos territoriais? Essa característica é muito comum entre alguns peixes recifais conhecidos como budiões (Labridae).


Eu lembrei muito da aula que tive com uma professora especialista em peixes recifais quando tava iniciando o mestrado... e aprendi sobre essas e outras curiosidades sobre os peixes recifais… e essa recordação me voltou com algumas reflexões importantes quando vi a divulgação do lançamento de um livro sobre os peixes recifais brasileiros que traz uma linda fotografia de um peixe budião na capa!

A primeira impressão foi… que arretado!! Finalmente não vamos mais precisar do livro do Paul Humann para aprender sobre esses animais de coloridos e formas exuberantes!


Cliquei no link da editora... primeira decepção!

O livro "em promoção de lançamento" custa R$ 469,00 (o preço "original" riscado no anúncio é de R$599,00)! Pela deusa! Como é que alunas, alunos e alunes de mestrado, doutorado ou até pesquisadores já no pós-doutorado como eu teremos condições de comprar um livro desses? Fui folhear a versão eletrônica que tem disponível no site da editora e daí outro impacto gigante!

Lista de autores colaboradores: das 35 pessoas que contribuíram... 30 homens e apenas 5 mulheres!! E sem desmerecer a competência profissional de cada uma delas, outro fato me chama atenção… pelo menos 3 delas são companheiras ou tem parentesco direto com algum dos outros autores e organizadores.

Volto perplexa para a postagem do lançamento do livro, e na divulgação de um dos organizadores do livro, a mensagem:


"boas novidades pessoal… nosso livro foi lançado… demorou apenas 20 anos para juntar todas as informações…" pesquisador brasileiro, nordestino, premiado e reconhecidíssimo internacionalmente (mora no exterior faz um tempão)

Minha reação falando para a tela do celular: Oxi doido! Como é que essa galera tá juntando informações pra escrever um livro há 20 anos... e em pleno ano 2023 não se incomodam de publicar uma obra tão importante e com tanta desigualdade de gênero!!

Senti uma decepção… e a indignação foi aumentando e eu sentindo meu sangue fervendo a medida que ia me lembrando de cada uma das mulheres pesquisadoras que estudam peixes recifais cujos nomes não constavam na lista de autores!!

Porque que nenhum desses autores questionou essa falta de equidade de gênero, doido!! 20 anos para juntar o material pra publicar o livro, ver essa lista de autores e não achar que tem algo ainda que precisa ser melhorado antes da publicação dessa obra prima??

Daí lá vou eu... pexinha pequena... juvenil ainda... perguntar lá no meio do cardume dos peixes grandes... machos dominantes (no grupo de whatsapp sobre ecologia recifal onde a maioria dos organizadores e autores estão), por que eles e elas não enxergaram essa questão como um problema que precisava ser revisto antes da publicação do livro??


O que vocês acham que eles responderam?


A) Na época que começaram a escrever o livro só tinham homens especialistas no assunto e para finalizar o processo acabaram só convidando o que estavam por perto, sabiam que responderiam rápido, mesmo reconhecendo que “por perto” (no laboratório deles) até tem mais mulheres hoje em dia, mas que é um processo lento, um dia a mulherada vai dominar...

B) Apontaram que não só perceberam a falta de equidade de gênero, como também de raça e de representatividade regional (um livro sobre peixes recifais brasileiros, sendo em torno de 90% dos recifes localizados na região nordeste e apenas 3 autores e 1 autora nordestina) e mesmo assim não fizeram nada para mudar esse cenário;

C) Acusaram essa peixinha que vos escreve de ser agressiva, precisar ficar mais calma e não atacar pessoalmente os peixes grandes do cardume;

D) Ficaram só observando o debate rolar e não falaram nada, ou mandavam figurinhas e compartilhavam outras notícias no grupo, provavelmente para encerrar o debate…

E) Todas as respostas anteriores.




Acertou quem escolheu a letraaaaaaaa.... (suspense)


E!!


Mas calmaaa, no meio deste oceano todo, não tem uma peixinha só!! E pouco a pouco no meio da conversa outras peixinhas foram se posicionando! Trazendo argumentos saudáveis para a discussão... e algumas informações importantes que até valem ser indicadas nesse texto: vocês já ouviram falar no termo gaslighting? Fica aqui a referência para estudo e o convite para um debate posterior sobre esse problema!

E além delas, alguns peixes grandes paralelamente entraram em contato comigo e declararam apoio a causa da diversidade e se mostraram dispostos a tentar aproveitar um pouco da posição de influência, destaque e poder que eles têm na acadêmia para tentar algumas mudanças no programa de pós-graduação!

Poxa, que sensação boa! Não, eu não tou doida, ou cega, ou sozinha nessa luta! Estamos a poucos meses de chegar em 2024! Numa década declarada da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável!! Onde os países buscam atingir, entre outras metas, a equidade de gênero (ou deveriam buscar)... Como não questionar os peixes grandes dos ambientes recifais brasileiros sobre essa desigualdade, né??


Basta de ter publicações com grande maioria ou até só homens na autoria, basta de ter só bancas de TCC, mestrado e doutorado só com pesquisadores e professores do sexo masculino, basta ir pra congressos, simpósios e outras reuniões científicas onde os destaques e pessoas de poder e liderança são os homens! Vamos propor novas normas, diretrizes e acordos para programas de pós-graduação, editoras, sociedades científicas, que provoquem mudanças reais nesse padrão patriarcal!

Eu finalizo esse "mergulho por mares turbulentos" querendo deixar um agradecimento especial para as sereias da Liga das Mulheres pelo Oceano! Ter uma rede de apoio, um espaço de acolhimento, onde possa me sentir segura e fortalecida, faz toda a diferença para me ajudar a seguir lutando por mudanças nesse sistema acadêmico doentio! E mais especial às sereias que também estão no grupo de whatsapp e argumentaram lindamente, com clareza e muita informação sobre o debate turbulento que aconteceu por lá esse fim de semana!

E quanto ao livro de peixes recifais dos recifes brasileiros, bem que poderiam publicar uma "Errata" né? Pelo menos reconhecendo que nos últimos 20 anos não deu para incluir mais equidade de gênero, raça e região (embora ironicamente essa seja a obra mais completa sobre diversidade de espécies de peixes pelo menos), mas que os autores e autoras se comprometem a nunca mais repetir uma falha dessas e a buscar promover mudanças junto a suas instituições de origem!

Que tal? Escreve um comentário aí falando quais mudanças vocês queriam ver no sistema acadêmico brasileiro?!

"Continuem a nadar…nadar… nadar…"



Sobre a autora


Bárbara Pinheiro, mulher negra nordestina, bióloga, mestre e doutora em oceanografia, pesquisadora do programa de desenvolvimento científico e tecnológico da UFAL, membro da secretaria executiva da Liga das Mulheres pelo Oceano, coordenadora dos GTs da Década do Oceano e de Mulheres Negras. Membro da diretoria das organizações da sociedade civil Instituto Yandê e Instituto BiomaBrasil. Apaixonada por ambientes recifais, comunidades tradicionais e recentemente teve a honra de ser uma das personagens do documentário Mulheres na Conservação.


Foto: João Marcos Rosa (com um agradecimento enorme do fundo do coração)


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3 comentários


Laís Chaves
Laís Chaves
02 de out. de 2023

Oi Bá, falou tudo e falou bonito. Estamos juntas e misturadas. Em conversa com meu esposo saiu a brincadeira "se tivesse mais mulheres autoras, tinha sido publicado em 5 anos". #brincadeiraséria

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Athila Bertoncini
Athila Bertoncini
27 de set. de 2023

Oi Bárbara! Excelente trazer essas reflexões lá do grupo para um público mais amplo. Gostaria de destacar sua frase “lutandopormudançasnessesistemaacadêmicodoentio”. doentil mesmo! e parte do que ainda acontece hoje é por conta desses sistema, que prioriza o A1, o fator de impacto, a pesquisa acima da extensão e da docência. é isso avalia os cursos e os professores, e todos se submetem a isso, sem questionar, sem se opor. Levando a uma competição muitas vezes sem qualquer cabimento (por pura vaidade), e vendo potenciais colaboradores como potenciais ameaças. Criando ainda mais segregação e desconfiança. E para todas as minoria, entrar nesse meio é mais desafiador ainda. Parabéns pelo seu texto, 100% fecho com ele, e que possa gerar ainda mais…

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Bárbara Pinheiro
Bárbara Pinheiro
27 de set. de 2023
Respondendo a

Oi Athila, pois é!! Revolucionar e decolonizar o sistema acadêmico é uma luta dificil! E não se faz só! Precisamos debater, nos unir, priorizar o que é urgente e provocar essa mudança!! Fico feliz em saber que as sementes que soltamos no ar, têm caido em algumas mentes férteis, que pararam pra pensar na questão e têm potencial gigante de ajudar a germinar e florescer novas ideias para alterar o sistema!!! Sigamos juntos, juntas e juntes!!

Abraço,

Barbara


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