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Navegar para construir pontes

Liga Convida: Marina Bidoia Gerdullo


Você já teve a sensação de estar revivendo um momento da sua infância? Aquela nostalgia que sentimos ao ver crianças brincando, correndo, descobrindo a praia, fazendo algo que você já fez ou fazia com frequência? Observar a nova geração é como observar o tempo, lembrando do passado e pensando no futuro. Nesses momentos, é difícil não ficar reflexiva e até entrar no infinito mundo do “e se”. Recentemente, eu passei por isso.


Sou velejadora e, nos últimos anos, tenho realizado projetos que visam expandir a participação feminina na vela. Isso tem me proporcionado experiências muito especiais, como a que aconteceu recentemente. Fui convidada para participar de um evento em Ilha Grande, que celebra os 3 anos da escola náutica local, promovendo uma regata com as escolas de vela da região da Costa Verde, a 3ª Copa AMHIG de Vela da Escola Social Náutica da Ilha Grande. 


O evento, muito bem-organizado, refletiu a paixão compartilhada pelos participantes em relação ao mar e à vela. Tanto os voluntários e professores que fizeram o evento acontecer, quanto as crianças, de todas as idades, engajadas na competição, sempre com respeito ao ambiente em que estavam. Sem dúvida, o tempo que passei nesse ambiente me transportou para os meus dias de escola de vela, quando velejava em pequenas caixinhas de fósforo, os barcos da classe “Optimists”, a base da vela, por onde a maioria dos velejadores começa a navegar. 


A autora e velejadora, Marina Bidoia. Foto: Thiago Bernardes (@maremfoto)

Dentre as muitas memórias ativadas nessa vivência, uma foi emblemática: uma menina capotou o barco durante a largada. Entendo que, para quem não é do meio, essa cena parece algo chocante, uma criança capotar um barco. Na verdade, isso é bem comum, é um exercício praticado nas aulas de vela, para aprender a desvirar o barco quando for necessário. Voltando à menina, ela desvirou o barco e seguiu, completando a prova. Uma cena simples, que durou poucos minutos, mas me lembrou de quando eu capotei o barco e não consegui desvirar. Mesmo já tendo praticado, eu não consegui. Foi o dia que eu desisti da vela. Só voltei a velejar anos depois, já adulta, em categorias oceânicas. Vendo a cena da corajosa menina desvirando seu barco e seguindo na competição, não pude deixar de pensar como as coisas seriam diferentes se eu não tivesse desistido. 


É curioso, porque eu fui convidada a participar do evento para integrar uma roda de conversa sobre mulheres do mar, para trazer mais referências às meninas e mulheres que participam da escola de vela, mas acabei aprendendo muitas lições com as crianças e a comunidade local. Não dá pra voltar no tempo, eu sei, mas dá pra ter esperança no futuro. Ao mesmo tempo que refleti sobre minhas escolhas, fiquei feliz e esperançosa de ver uma menina corajosa e perseverante, com um futuro cheio de possibilidades pela frente.


Achava que minha presença lá fosse para compartilhar minhas histórias e falar sobre a importância de seguir seus sonhos, mas pelo visto, elas me mostraram que já sabem muito bem disso e ainda me lembraram da menina que fui, que tinha medo e parava, mas que hoje aprendeu a seguir, apesar do medo. 


A vela é um esporte que ensina muito, não só como levar um barco nas diversas condições que encontramos no mar, mas também sobre resiliência, independência e colaboração. Faz com que desde cedo tenhamos contato com o mar e com toda a vida marinha que navega conosco, trazendo uma consciência do tamanho do oceano e o quanto somos pequenos em relação a ele. Essa conscientização mostra rapidamente os impactos que podemos causar e principalmente, evitar. Navegar constrói pontes, com o passado, com outras pessoas, faz chegar em outros lugares. Neste evento, navegar construiu uma ponte com o futuro.


Durante a roda de conversa, com um grupo de mulheres inspiradoras, e também nos dias que passei na Vila do Abraão, conheci alguns personagens que vivem em Ilha Grande. Pude conhecer suas histórias e descobrir projetos que cuidam desse ecossistema, como o turismo comunitário, educação ambiental, entre várias outras iniciativas, que mantêm vivos os saberes e histórias locais. 


Em contraponto, vi turistas de vários lugares do mundo, pessoas com suas embarcações, diversas ofertas de passeios e atividades para quem vem visitar a ilha. O turismo segue sendo uma das principais atividades da região e, se feito sem cautela, pode abalar o equilíbrio existente entre a comunidade que habita a ilha e a natureza que a envolve. 


Assim como as crianças que participam da escola náutica, eu também cresci em uma ilha, cheia de turistas e com uma profunda conexão com a natureza. Entendo que é mais interessante conhecer o diferente, o que vem de fora, sair da ilha para conhecer o mundo. Sem dúvida, sair da ilha é muito importante, para que possamos ver tudo de um outro ângulo, mas não podemos esquecer de valorizar o que já conhecemos, aquelas coisas que a gente sabe desde tão pequeno que nem lembra quando aprendeu. 


Essas coisas têm valor, esses saberes mantiveram o equilíbrio do homem com a natureza por anos e não podem ser trocadas por um aplicativo. Poder juntar as tecnologias atuais com conhecimento “dos antigos” é quase um superpoder e, se bem aplicado, pode transformar um futuro num lugar muito bom de se estar.


O convite para a celebração do aniversário da escola de vela se tornou um convite para grandes e importantes reflexões. Que eventos como esse continuem a criar pontes entre o passado e o futuro, incentivando as novas gerações a seguir navegando, a conhecer sua história, buscar referências e cuidar do ambiente que vivem


Sobre a autora:

Marina é natural de São Paulo, formada em Arquitetura e Urbanismo, especializada na área da construção naval. Apaixonada pelo mar, aos 22 anos se tornou capitã amadora pela Marinha do Brasil, começou a velejar durante a infância, em Ilhabela. Hoje já soma mais de 5 mil milhas náuticas navegadas e foi a pessoa mais jovem a completar, em solitário, a maior regata do Brasil, a REFENO, que sai de Recife e chega em Fernando de Noronha. Como Arquiteta, desenvolve pesquisas e projetos sobre espaços que unem o mar e a terra, sempre com foco na cultura náutica brasileira e na preservação do meio ambiente. Nos últimos anos tem se dedicado a projetos que incentivam a vela e abrem espaço para que mais mulheres participem do esporte.

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