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No feminino: corajosa

  • Foto do escritor: Colaboradoras da Liga
    Colaboradoras da Liga
  • 3 de out
  • 8 min de leitura

Por Luiza Perin


Entre travessias, encontros improváveis e sincronicidades profundas, aprendi que coragem, coletividade e escuta são virtudes que nos mantêm à tona. Compartilho aqui um pedaço dessa jornada — uma travessia escrita para inspirar outras mulheres a remar comigo por um oceano mais saudável e justo.


Sou mulher do mar. Minha vida, meus caminhos e meus sonhos têm nas ondas o seu compasso. Ao longo da minha trajetória, encontrei no oceano inspiração e a escola mais exigente e generosa que conheci. Nele aprendi sobre coragem, escuta e entrega - virtudes que me guiam em travessias e projetos. Recebi com honra o convite para escrever na seção Liga Convida da Newsletter da Liga das Mulheres pelos Oceanos, espaço que dá visibilidade ao trabalho de mulheres na proteção dos oceanos. Ao me apresentar nesta rede, integro uma correnteza coletiva capaz de transformar as águas e o futuro que escolhemos navegar.


Transito entre o universo educativo e a prática viva no mar, traduzindo experiências em narrativas que inspiram outras mulheres, crianças e comunidades a se aproximarem do oceano como quem se aproxima de seu lar. O mar é casa, quintal e estrada, é conexão. Como escritora e palestrante, minha jornada entrelaça ciência, ancestralidade e inspiração. Sou autora do livro Vou de Canoa: Um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar, e das obras infantis A Canoa Polinésia e Estrela da Felicidade. Através do Projeto Vou de Canoa, dedico-me a fortalecer a cultura oceânica utilizando a canoa polinésia como instrumento de conexão, coletividade e respeito à natureza. Acredito que remar transcende o ato de atravessar águas: representa um exercício de confiança, ritmo compartilhado e cuidado com aquilo que nos sustenta.


“Tem um tubarão enorme atrás de você!”, gritou o homem do barco verde. Eu remava em uma prancha de SUP em um trajeto oceânico entre as ilhas de Maui e Molokai, no Havaí. O que senti nesses minutos em que fui perseguida e espreitada por um tubarão-tigre de 4,5m foi muito mais do que medo. Aquela era uma competição com mais de cem atletas e eu já não me importava por estar entre os últimos colocados. Conhecendo a lei natural mais nua e crua da vida - a cadeia alimentar - experimentei a mesma sensação de vitória do campeão da prova. Não pela classificação, pois cheguei em último, mas por não ter sido escolhida como presa e sobreviver àquela experiência.


O capitão do barco avistou a cena à distância e apontou determinado em minha direção. Ele gritava frases em inglês incompreensíveis devido ao vento forte, que soprava a 60km/h. Era justamente por isso que eu estava ali: para remar no famoso downwind do Havaí, com grandes ondas formadas pelo vento que se afunila na geografia vulcânica dos canais entre as ilhas.


  1. Luiza no momento da chegada da prova em que foi perseguida pelo tubarão, 2014. Foto: registro oficial do evento, 2014. Foto: autoria em marca d’água

  2. Luiza no barco Corajosa, três anos depois do encontro com ele e com o tubarão-tigre no mar do Havaí, 2017. Foto: arquivo pessoal


Como bióloga marinha, percebi-me imediatamente presa do maior predador dos mares, em seu habitat natural, exercendo seu pleno direito de perseguir uma prancha em movimento com um ser humano em pé nela. A nadadeira dorsal do animal era da altura dos meus joelhos. Seu dorso rajado e seu corpo extremamente ágil não deixavam dúvidas sobre quem estava ao meu lado. Ora ao lado, ora atrás. Em uma coreografia de pânico e harmonia, ele nadava ao ritmo da minha remada. Eu afundava o remo, ele mergulhava o corpo e desaparecia. Eu retornava o remo à frente, ele ressurgia. Vivia cada segundo como se fosse o último da minha vida. Meus músculos enrijeceram e o sangue desapareceu da face. Apenas aguardava a sensação mais tenebrosa do imaginário de quem sempre se faz ao mar. Morreria, mesmo, abocanhada por um tubarão, no Havaí? Era o meu fim? Foi uma adrenalina muito estranha. Além do medo e pânico, toda minha vida visitou meus pensamentos naqueles instantes. Houve tempo de sentir pesar pela minha família e meu marido, que viveriam o luto. Também fui tomada por uma compreensão tão plena e instintiva sobre a vida, que parecia me trazer, junto com o pavor, alguma paz. O capitão do barco, quando enfim consegui compreendê-lo, gritava: “Keep paddling, d’ont fall now!” (Continue remando, não caia agora!). Com sua experiência, ele sabia que qualquer tentativa de interromper aquela dança hipnótica entre mim e tubarão poderia ser fatal. E incentivava: “Good job, baby. Good job!” (Bom trabalho, garota, bom trabalho!). Foi quando ele posicionou sua embarcação bem à minha esquerda e entrou naquela coreografia, que percebi o milagre da cena. Remava, agora, entre um tubarão-tigre enorme e um barco verde claro com o nome mais inusitado possível, naquele local e naquele momento. Para mim, isso permanece misterioso. Em pleno mar do Havaí, a embarcação de um havaiano tinha um nome não só em português, como no feminino. Scott Kalid Olival, o capitão, era apaixonado pela cultura latino-americana. Já havia viajado pelo Brasil e, por isso, resolveu dar ao seu barco o nome de Corajosa. Foi assim, então, que atravessei remando um dos trechos de mar mais selvagens do Oceano Pacífico. De um lado, o maior símbolo de medo nos mares; do outro, uma mensagem vinda de um lugar improvável que muitos chamariam de coincidência, compondo um cenário surpreendentemente cinematográfico para lembrar de tudo o que posso ser diante da vida. No feminino: corajosa.



O Projeto Vou de Canoa


Que coincidência extraordinária! Carl Jung, psiquiatra suíço e figura central da psicologia, chama uma “coincidência significativa” de sincronicidade: quando acontecimentos externos se alinham com o que você está vivendo por dentro, como pensamentos, sonhos e sentimentos - mesmo sem uma explicação lógica causal. Silêncio. Intuição. Respeito. Demorei anos para escrever ou falar publicamente sobre essa experiência. Como bióloga marinha e educadora ambiental, evito alimentar o pânico comum associado aos tubarões. Busco aproximar as pessoas do mar, despertando curiosidade, paixão e sentimento de pertencimento. Depois daquele encontro, minha vontade de estudar e conhecer mais a cultura polinésia, proveniente das ilhas do Oceano Pacífico, aumentou. A relação destes povos com o oceano e com suas canoas é fascinante. Cada descoberta reforçava minha convicção: a educação ambiental, para ser transformadora, precisa ser também, cultural. Mantive essa ideia na cabeça. Quanto mais eu aprendia sobre a canoa e o mar, mais sentia a sensação de ter assumido um novo compromisso com o oceano.


Anos depois, movida pelo desejo crescente de compartilhar aprendizados sobre o mar criei o Projeto Vou de Canoa - um programa socioambiental baseado em educação, esporte e cultura. Desde 2019, o projeto impactou a vida de mais de 4.500 crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social através de atividades educativas e experiências com remada em canoa polinésia. Para despertar curiosidade e encantamento, apresentamos às crianças uma exposição rica em biologia marinha e cultura. Conchas de diferentes tamanhos, texturas, cores e formas atraem os olhares curiosos, e exemplares de corais e outros organismos marinhos. E, claro, uma arcada de tubarão. Uma interessante coleção com aproximadamente 400 amostras de areia do mundo todo propicia diálogos criativos. Os temas abrangem desde a formação da Terra, o tempo de decomposição de materiais como vidro e plástico, até a relação entre a beleza dos diferentes tipos de areia e a diversidade humana. A exposição inclui uma coleção de canoas e remos tradicionais, que celebra a relação de respeito entre seres humanos e natureza nas culturas que utilizam essas embarcações. Além das canoas polinésias, apresentamos remos e embarcações caiçaras, indígenas, jangadas e outras variações regionais. A comparação das canoas tradicionais de diferentes culturas promove diálogos educativos sobre passado, presente e futuro do planeta.


Dedicar-se a um projeto socioambiental exige persistência. De fato, a vida raramente oferece caminhos fáceis. E aqui está a chave da sincronicidade: não é sobre acreditar ou não. É sobre perceber. Tão extraordinário quanto escapar do tubarão foi receber do destino a lembrança de minha própria coragem diante dos desafios que posso enfrentar. Além do viés esportivo com as experiências no mar e da transmissão de saberes com a exposição educativa, o Projeto Vou de Canoa também se dedica a doação dos livros A Canoa Polinésia e Estrela da Felicidade para todas as crianças atendidas. O primeiro apresenta a canoa, conhecida também como va’a, de forma lúdica e convidativa, incorporando-a ao ambiente marinho com reflexões sobre biodiversidade e preservação. O segundo, lançado em agosto de 2025, propõe uma imersão sensível e poética na sabedoria ancestral dos povos polinésios, reconhecidos por sua notável capacidade de navegação pelas estrelas e pelos sinais da natureza. A narrativa se inspira na estrela Arcturus como símbolo de orientação, coragem e propósito. Por meio de uma linguagem acessível, o livro desperta a imaginação ao mesmo tempo em que estimula reflexões sobre temas universais, como a busca pela felicidade, o enfrentamento dos desafios e a escuta da própria intuição.


  1. Crianças recebendo instruções de um dos professores de educação física do Projeto Vou de Canoa.

  2. Luiza apresentando a exposição de ciência oceânica do Projeto Vou de Cano.

  3. Livros A Canoa Polinésia, de Luiza Perin, distribuídos para crianças de escolas públicas.

    Fotos: arquivo Projeto Vou de Canoa



O mar como escola viva


Todas as minhas experiências no mar me trouxeram lições e continuam me ensinando diariamente. Como remadora, mais do que competições, me atraem mais as travessias. Além do extraordinário sentimento de conquista ao remar de um ponto geográfico a outro, as distâncias no mar também ensinam de forma didática e prática a importância da resiliência e confiança. Cada travessia, remada e experiência no mar é uma oportunidade de aprendizado. Entre as travessias mais marcantes da minha vida, além do encontro com o tubarão, naturalmente, está o percurso de 130km entre Niterói, minha cidade, e a Ilha Grande. Realizei este trajeto seis vezes, todas especiais e significativas. Na primeira vez, em julho de 2010, com uma equipe mista de homens e mulheres em uma canoa polinésia de seis lugares, completamos a travessia em 17 horas de remada. Eu sabia que remar não era apenas sobre força, mas sobre alinhar o ritmo e confiar no compasso coletivo. Dois anos depois, em 2012, muito determinada e sentindo-me preparada, remei o mesmo trajeto sozinha em uma canoa individual. Foi quando encontrei todas as respostas para perguntas sobre a vida que eu ainda viria a fazer. O que aprendi sobre paciência, entrega e determinação, sem dúvida, foram gravados na minha alma naquela remada que durou, ininterruptamente, 28 horas entre a Praia de Charitas (Niterói-RJ) e a Praia de Palmas, na Ilha Grande (Angra dos Reis-RJ). O documentário desta jornada está no YouTube com o nome de Imua Guardiã. No anseio de mostrar a outras mulheres remadoras o seu potencial, organizei, pelo Surf Hoe, meu clube de canoa polinésia, duas expedições de Niterói à Ilha Grande com tripulação exclusivamente feminina. Em ambas, mulheres de diferentes idades e níveis de experiência puderam vivenciar e sentir a canoa polinésia como símbolo de coletividade e potência.


  1. Luiza em travessia de Niterói à Ilha Grande, em 2024.

  2. Travessia de remadoras de Niterói à Ilha Grande, em 2024.

    Fotos: Lívia Gass.


Vamos remar juntas?


A canoa ensina colaboração - e essa é também a essência da Liga e do seu papel no cuidado com o oceano. A presença feminina fortalece iniciativas de proteção, educação e cultura. Somos uma rede de protagonismo e ação transformadora: mulheres que lideram projetos em zonas costeiras e marinhas, que promovem ciência, cultura e educação, inspirando outras a remar juntas por um oceano mais saudável e justo.


Eu sigo aprendendo - e quero permanecer aprendiz. Caminhar (ou remar) ao lado de outras mulheres nessa jornada pela preservação dos mares é o que me move. Quando escutamos o mar, entendemos que não existe fim, apenas continuidade: uma corrente viva que nos chama sempre a prosseguir. Me despeço com uma ideia: que possamos nos encontrar também nas águas, celebrando a força que temos quando remamos juntas. Quem sabe, em breve, uma remada da Liga das Mulheres pelos Oceanos?



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Luiza Perin, brasileira de 45 anos, e remadora e uma das pioneiras do va’a (canoa polinésia) no Brasil, além de referência nacional em pesquisas sobre cultura polinésia, canoa e ancestralidade. Autora do livro Vou de Canoa: um olhar sobre a cultura polinésia e outras histórias do mar, já alcançou milhares de leitores em todo o país.

Sua trajetória integra, com sensibilidade e impacto, conhecimento cultural, prática esportiva, educação ambiental e preservação dos oceanos — sempre com o mar como ponto de encontro entre saberes e transformação social. Bióloga marinha com especialização em Educação Ambiental, formada também em Comunicação Social e Marketing, e fundadora do Projeto Vou de Canoa, iniciativa socioambiental que promove esporte, educação e cultura para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Criou o Surf Hoe, clube de canoa que já apresentou o va’a e suas nuances para milhares de pessoas.












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