Jornalista náutica e fundadora do Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos
Por Nysse Arruda
Paulistana da gema, nascida e criada na Vila Mariana, não tive aventuras marítimas na infância e adolescência, apesar de ter umas fotos de quando eu era pequenina na beira da praia a apontar para o horizonte distante e a lembrança de um ou outro acampamento, já adolescente, numa das praias do litoral norte de S. Paulo, com direito a ataque de ‘borrachudos’ quando se construía a estrada Rio-Santos.
Foi só quando terminei o curso de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, em plena Avenida Paulista, que o mar e os veleiros aconteceram na minha vida. Para comemorar a conquista do diploma universitário decidi ir sozinha para Porto Seguro para ver como é o lugar onde Cabral descobriu o Brasil. Era meados dos anos 80 e ainda consegui encontrar Porto Seguro original, com suas pequenas casinhas e pensões, ruelas e portinhos junto ao rio, pouca gente e aquele mar lindo abraçado por uma linha de coqueiros verdinhos na praia.
Como também queria ir a Trancoso (que na altura só tinha dois acessos: por mar ou por trilho na mata) encontrei um belo saveiro baiano, todo branco, que oferecia passeios turísticos. O skipper era um rapaz local que me disse que fazia os ‘tours’ ali durante o verão brasileiro e depois seguia para o Caribe para apanhar a temporada de lá.
Mal ouvi a estória e pisei no convés daquele saveiro baiano soube de uma forma meio abstrata que era por aí, por causa do mar, que minha vida iria seguir dali em diante! A velejada foi incrível, Trancoso naquela altura era uma vilazinha de nada, mas tão linda e aquele mar ali, aquele horizonte tão largo e tão longe.
Quando regressei a São Paulo fui logo me inscrever num curso de vela na represa de Guarapiranga, num curso de arrais e patrão de costa, num curso de rádio (Morse!), num curso de aperfeiçoamento de inglês e em treinos de natação. Para custear tudo isto, iniciei minha carreira de jornalista à base de trabalhos freelancers de revisão até que, um ano e tal adiante, acordei um belo dia e percebi que a rota era escrever sobre vela.
E foi assim: enviei cartas para a editora de uma revista náutica que por acaso estava a abrir um escritório em São Paulo; fui bater à porta da redação da Folha de S. Paulo e comecei a escrever um parágrafo ao fim de semana sobre as regatas na represa de Guarapiranga.
Logo passei a ir de ‘carona’ nas regatas em Bertioga em veleiros maiores (e numa delas apanhámos uma tempestade tão forte que a tripulação me mandou para dentro da cabine, com receio de eu ser levada pelas ondas!).
Dali para as regatas em Ilhabela foi um pulo e as reportagens na Folha de S. Paulo ganharam mais espaço e comecei também a escrever textos sobre o mar para o programa Daiquiri, na Rádio Beira-Mar de São Sebastião, com o patrocínio da original loja Yachting Gear.
Nem fazia um ano que eu estava a escrever sobre vela e aconteceu a chegada na Bahia do navegador Amyr Klink depois da sua fantástica travessia do Atlântico Sul a remo.
Entrevistei-o semanas mais tarde em São Paulo e quando ele confidenciou que na verdade seu verdadeiro projeto era ir para a Antárctica a solo a bordo de um veleiro, percebi que haveria muitas estórias náuticas pela frente.
Tornei-me uma habitué do escritório onde tudo estava a acontecer – uma agitação de engenheiros, meteorologista, arquitetos navais e mais uma série de especialistas em diversas áreas, todos a contribuírem com suas ‘expertises’ para o sucesso do projeto da 1.ª Invernagem Solitária à vela na Antárctica!
Legenda da foto: A ‘turma’ do escritório do Amyr Klink em São Paulo, 1985.
A escrever também para a Folha Mulher (sobre o que quer que se relacionasse com a vela – moda náutica; mulheres na vela, reportagem que me levou a conhecer a 1.ª tripulação feminina brasileira comandada por Francesca Angeli, a Kika, a disputar a Regata Santos-Rio) sugeri um artigo sobre alimentação em viagens oceânicas e, lógico, fui entrevistar o Amyr e a nutricionista da empresa Nutrimental que estava a desenvolver um programa alimentar especial, com produtos desidratados/liofilizados, para os dois anos de duração da viagem e estadia na Antárctica.
Era eu, a fotógrafa Renata Falzoni e a nutricionista na cozinha experimental da Nutrimental a rirmos imenso com as brincadeiras com as panelas que o Amyr protagonizava enquanto dava a entrevista e posava para as fotos. No final da conversa, ele disse para nós três que havia sido convidado pela Marinha Brasileira a ir visitar no verão daquele ano (85-86) a Base Comandante Ferraz na ilha Rei George na Península Antártica – ao que eu exclamei: ‘que legal, você vai poder ir antes de ir!’ – e o Amyr replicou com uma pergunta que era quase um desafio: ‘Porquê vocês não vão também?’
Caímos todas na risada. Imagina, ir para a Antárctica, só o Amyr mesmo para sugerir uma coisa destas! Imagina! Mas, em todo o caso, fiquei com o contato do Comandante da Secretaria Geral da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar – SECIRM. Sempre poderia fazer uma entrevista com o comandante, pois não?
Mas cerca de três semanas depois, pensando melhor, decidi que sim, que queria ir para a Antárctica para registar a visita do Amyr Klink e fazer uma bela reportagem. Daí que me embrenhei numa rota de burocracias e preconceito contra o género feminino que só fortaleceu a minha determinação de ir mesmo para a Antárctica.
Iniciei então os contatos com Brasília: telefonemas e envio de correspondência – estávamos em meados dos anos 80 e não havia nada além de telefone fixo e correio à disposição! Se bem me lembro era Maio ou Junho quando esta saga começou e estendeu-se por todo o ano de 1985 até aos primeiros meses de 1986.
A cada contato telefónico a narrativa pouco variava além de «ah, se você fosse homem tudo bem»; «ah, se você fosse homem já estava lá» e os meses passando e o navio Barão de Teffé partindo em Novembro e eu à espera de um sinal positivo, já com a mochila pronta. Mas nada acontecia, passou Janeiro, passou Fevereiro e no início de Março o Amyr anunciou que a data da sua partida já estava marcada!
Num último recurso, liguei para Brasília e quando o comandante atendeu e começou a dizer a frase «ah, se você fosse homem…» eu repliquei de imediato «comandante, eu já cortei o cabelo ‘a reco’, de verdade, se precisar deixo crescer a barba». Silêncio na linha. Julguei que ia ouvir um redondo não! Mas o comandante disse: «ok, você vai, mas antes tem de fazer um batalhão de exames médicos e enviar os resultados dentro de dois dias!»
E foi neste afã, nesta correria e ansiedade que embarquei num avião Hércules C-130, com aquela pintura camuflada a dar um ar ainda mais aventureiro à viagem. A aterragem na pista de seixos rolados na base chilena na ilha do Rei George deixou-me um bocado atónita - um nevoeiro denso quase cobria umas montanhas escuras na distância, um chão lamacento de cor castanha e um enorme hangar com vários militares chilenos armados com metralhadoras!
Em meio aos containers coloridos espalhados por ali, aos trancos e barrancos caminhei até ao pequeno porto onde estava atracado o navio Barão de Teffé, que levaria toda a gente para o outro lado da ilha, para a Base Brasileira Comandante Ferraz.
Depois de uma noite inteira de navegação, na manhã do dia seguinte ao acordar foi a alegria de ver neve pela primeira vez – grandes bocados de neve branquinha a contrastar com a cor vermelha do imenso convés do Barão de Teffé e o azul das geleiras silenciosas na baía do Almirantado.
Legendas das fotos: O avião Hércules C-130 na pista; a cerimónia em frente à Base Brasileira Comandante Ferraz;e o pinguin solitário.
Começou ali a minha trajetória profissional internacional – incluindo uma tremenda tempestade de cinco dias no Estreito de Drake na viagem de regresso ao Brasil a bordo do Barão – e não parei mais de viajar pelo mundo todo durante mais de duas décadas.
Seguiram-se as reportagens sobre campeonatos internacionais de vela; a primeira volta ao mundo e o primeiro livro sobre Whitbread Round the World Race em 1989-90; a minha mudança para a Inglaterra; a minha vinda para Lisboa, no início dos anos 90, e as centenas e centenas de artigos sobre a regata de circum-navegação Volvo Ocean Race, os recordes transatlânticos, as várias edições da America’s Cup, a participação na Grand Regatta Colombo – 500 Anos (três meses embarcada num Tall Ship polonês maravilhoso), os Jogos Olímpicos em Sydney e os muitos campeonatos do mundo sobre os quais escrevi no jornal Publico durante 14 anos e, mais tarde, no Diário de Notícias e Expresso.
Legendas das fotos:
A bordo do Multi70 Spindrift do skipper Yann Guichard em Cascais; Com o surfista de ondas gigantes Garrett MacNamara (um dos padrinhos do Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos) na Nazaré, 2018, Entrevistando o skipper australiano Jimmy Spithill – America’s Cup.
Sem contar os sete livros sobre vela de alta competição lançados em Cascais e Lisboa. Como dizia o Chico Buarque: «tanto mar, tanto mar», mares e oceanos que fui conhecendo e aprendendo a entender.
Mares e oceanos que estão num estado calamitoso devido à ação humana desregrada e danosa, que testemunhei por diversas vezes – a negligência de tantos, a indiferença de outros, a ignorância de muitos, a ganância de vários.
Por causa disto lancei em Julho de 2018 o Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos, uma série de palestras livestream apresentando informação atualizada sobre os oceanos, conectando os países de Língua Portuguesa e contribuindo para tornar Portugal num polo de partilha de conhecimento sobre os oceanos. Este ano e em 2021 o CCOceanos em parceria institucional com a UNESCO-COI está a realizar uma série especial de palestras no âmbito da The Ocean Decade.
Já são 19 palestras completas desde então, reunindo mais de 60 oradores com os mais diversos backgrounds profissionais e académicos. Gente que estuda o mar, que vive do mar, que adora o mar, que brinca no mar e reconhece no mar o princípio da vida.
Legenda da foto: A 6.ª Palestra do Centro de Comunicação dos CCOceanos-CCOceano, em Setembro 2018, num cenário composto por 10 toneladas de plástico compactado no Centro de Triagem da Valor Sul-EGF, 1.º patrocinador do CCOceanos. Esta palestra foi premiada pela Fundacom Madrid em Maio 2019, nas categorias Comunicação Empresarial Externa e EcoEvento.
Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos
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