Por Carolina Cardoso e Letícia Camargo, do PainelMar
O PainelMar é uma plataforma colaborativa composta por profissionais das Ciências do Mar, instituições de pesquisa, organizações e movimentos da sociedade civil. A rede atua na interface entre o conhecimento e a formulação de políticas públicas, incidindo politicamente para o uso sustentável e saudável da zona costeira e marinha brasileira.
A recente e controversa discussão em torno da PEC 03 de 2022, Proposta de Emenda à Constituição que extingue os terrenos de marinha que ficou conhecida como “PEC da privatização das praias”, causou um alvoroço não apenas entre políticos e celebridades, mas trouxe à tona um tema que é central para os brasileiros, a praia. As praias fazem parte da cultura brasileira e são a principal fonte de lazer para a maioria da população, resguardando um dos espaços mais democráticos que existem no país.
Com a retomada da discussão desta pauta em decorrência da Audiência Pública, em maio de 2024, o PainelMar por meio do GT Mar da Frente Parlamentar Ambientalista, realizou um importante trabalho de articulação e mobilização, pautando parlamentares, movimentos sociais, sociedade civil, influenciadores digitais envolvidos com a temática e veículos de comunicação. Com o apoio de outras organizações da sociedade civil, foi possível produzir conteúdo para atingir a opinião popular e incidir de forma relevante nesta matéria que coloca em jogo interesses coletivos valiosos.
Logo após a Audiência Pública no Senado Federal, a opinião pública se manifestou rapidamente e a grande maioria da população se mostrou contrária à proposta. Na enquete do senado, 98,6% opinaram contra a matéria. A oposição popular exerceu forte pressão por meio de manifestações, mobilizações nas redes sociais e campanhas com as hashtags #DefendaNossasPraias #Privatização e #PacotedaDestruição. Isso fez com a proposta não fosse colocada em pauta naquele momento.
No entanto, o texto que tramita na CCJ do Senado, poderá ser pautado a qualquer momento e a discussão será retomada.
Mas o debate em questão pode ir muito além da privatização das praias. Inicialmente, é necessário esclarecer que os terrenos de marinha são áreas adjacentes às praias. São áreas costeiras que vão da linha de preamar até 33 metros para o interior, abrigando ecossistemas diversos, como mangues, áreas com influência de maré, restingas e dunas. No entanto, a polêmica em torno da privatização das praias se justifica. Caso a proposta seja aprovada e os terrenos à beira-mar privatizados, haverá um aumento das construções e ocupações nessas áreas. Como consequência, o acesso da população às praias — bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido — poderá ser dificultado ou até mesmo impedido.
Quando os terrenos de marinha foram criados, a segurança nacional era a prioridade nessas áreas, entretanto, hoje, eles são essenciais para enfrentar as mudanças climáticas e contribuem com a adaptação aos efeitos resultantes dos eventos extremos, como a elevação do nível do mar e a erosão costeira.
Essas regiões também são lar de comunidades tradicionais que dependem dos recursos marinhos para sua subsistência. Muitas dessas pessoas vivem em áreas vulneráveis e não têm opções seguras de moradia. A proposta de extinção dessa faixa de segurança pode levar à expulsão dessas famílias e à ocupação desordenada, prejudicando os ecossistemas e aumentando a ocorrência de desastres naturais e a vulnerabilidade social.
O aumento da temperatura global está agravando a erosão costeira e áreas como Recife e Rio de Janeiro podem ser severamente afetadas até 2050. A proteção de restingas e manguezais é vital para a segurança e bem-estar das populações. Em muitos países, as faixas de proteção são mais amplas do que as do Brasil, reforçando a importância de manter os terrenos de marinha.
Eliminar essa proteção pode resultar em degradação ambiental, perda de qualidade de vida e impacto econômico negativo, especialmente para o turismo e a pesca. A proposta pode ainda forçar comunidades tradicionais a deixar suas terras devido à instalação de grandes empreendimentos do setor turístico.
É crucial que decisões desse tipo sejam participativas, envolvendo as comunidades afetadas, especialmente povos e comunidades tradicionais que dependem das áreas costeiras. A falta de consulta adequada evidencia a necessidade de um diálogo aberto e inclusivo no processo decisório.
A PEC 3 de 2022 ainda levanta preocupações sobre a segurança nacional, a soberania e o uso de áreas estratégicas. Os terrenos de marinha têm um papel histórico e atual na defesa do país e por esta razão, durante uma audiência pública realizada no Senado, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) manifestou sua oposição à PEC, alertando para os riscos que representa à defesa nacional e ao Estado democrático.
A proposta em questão também suscita discussões sobre problemas relacionados à propriedade de terras e à tributação. Os defensores da proposta argumentam que as taxas pagas à União são desproporcionais, os ocupantes pagam duas taxas, o foro, que é uma taxa anual, e o laudêmio, em caso de venda. Se a PEC 03 for aprovada, essas taxas seriam eliminadas e os ocupantes se tornariam os únicos proprietários, pagando apenas o IPTU para os municípios. O relator da PEC afirma, sem fundamentação, que isso trará benefícios para famílias de baixa renda, porém não há comprovação nem garantias desta declaração.
Ainda que as áreas de interesse social estejam previstas no texto da PEC 03 de 2022, o acesso a essa condição não está garantido frente à desatualização dos cadastros dos ocupantes dos terrenos de marinha. Desse modo, a venda compulsória dos terrenos gerará um impacto social e um aumento da desigualdade ainda não mensurados.
Atualmente, existem pouco mais de 560 mil terrenos de marinha cadastrados, conforme dados da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), mas estima-se que haja quase 3 milhões não cadastrados. Isso gera incertezas sobre como, e se, a transferência de propriedade será feita. A aprovação da PEC pode causar um caos administrativo, devido à necessidade de regulamentações diversas, e a compulsoriedade da aquisição pode ser um fardo financeiro para muitos.
Visando enfrentar as dificuldades atuais em relação a esses terrenos, ressalta-se a importância de aprimorar a gestão dos terrenos de marinha, fortalecer a SPU, mantendo a União como gestora, mas com uma colaboração mais forte com estados e municípios para garantir uma gestão e planejamento adequados para designar áreas para expansão urbana e infraestrutura, agilizar o processo de demarcação e regularizar ocupações legítimas de maneira a garantir a manutenção de áreas ambientais estratégicas.
Essas regiões são essenciais para a adaptação às mudanças climáticas e para a proteção de grande parte da população que vive no litoral. Por isso, é essencial que a gestão das áreas costeiras seja feita de forma integrada e participativa, envolvendo a sociedade para buscar justiça socioambiental e manter praias livres de cercas ou muros.
Sobre as autoras
Carolina Cardoso
Ecóloga, com mestrado em Oceanografia pelo IO-USP e doutorado em Meio Ambiente pela UERJ. Sua carreira é marcada pela criação de elos entre a ciência e a sociedade, para promover o uso sustentável dos recursos costeiros. Como Secretária Executiva tem um papel crucial na gestão administrativa e executiva do PainelMar, e de coordenação das orientações estratégicas de ações propostas pelos membros da rede.
Letícia Camargo
Gestora Ambiental formada pela Universidade Federal do Paraná e Mestre em Políticas Ambientais e Territoriais pela Universidade de Ferrara. Atuou como consultora da ONU em projetos da FAO no Ministério da Pesca e da Agricultura e trabalhou como assessora técnica da Coordenação Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Foi assessora técnica de políticas socioambientais no Congresso Nacional e hoje é responsável pela incidência política do Painel Mar.
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