Por Camila Pegorelli
Já faz tempo que quero escrever esse texto sobre o Planejamento do Espaço Marinho (PEM) no Brasil. Mas com um Projeto de Lei que tramita desde 2013 e sem previsão para se consumar, parece algo que acabou ficando só para discussões na academia. Isso pode estar mudando.
Para contextualizar um pouco, o PEM, pela definição mais comumente utilizada, é um processo público de análise e alocação dos usos e atividades humanas no mar para atingir objetivos ecológicos, econômicos e sociais que são definidos por meio de um processo político. Os usos e atividades são diversos, incluindo desde as atividades econômicas como pesca, transporte (portos e rotas), turismo, indústria de óleo e gás, energia renovável (onda, vento, maré), entre outras, bem como os usos e atividades relacionados a cultura, conservação, patrimônio histórico-cultural, biodiversidade, além de outras. Com base ecossistêmica, o PEM busca diminuir conflitos entre esses usos e atividades, potencializar sinergias e garantir a saúde e biodiversidade do ecossistema, garantindo sua sustentabilidade.
Para garantir o desenvolvimento sustentável do nosso oceano e do sistema (econômico, ambiental e social) dependente dele e de seus recursos, o PEM é construído com base na ciência, em dados, na participação pública (desde o comecinho), na transparência do processo, e na sua adaptabilidade para corrigir estratégias e incorporar novas informações e ajustar ações após as etapas de monitoramento e avaliação.
Aqui eu gostaria de fazer um parênteses para falar sobre o tão usado conceito de sustentabilidade, muitas vezes aplicado/entendido de maneira equivocada, ou como marketing/publicidade. Grupos de diferentes setores com os quais eu dialoguei veem, sentem e entendem esse termo de maneira oposta. Para uns, sustentabilidade é um jeito de mascarar o desenvolvimento econômico às custas da sociedade e do ambiente, com pouca ou nenhuma atenção a esses pilares. Já para outros, sustentabilidade é a criação de áreas protegidas que excluem todo e qualquer tipo de atividade socioeconômica na região. Existem estudos que apresentam o termo de forte e fraca sustentabilidade para processos com esse tipo de abordagem, ambos uma distorção do real conceito de sustentabilidade.
Voltando ao que me levou a escrever esse texto, o primeiro ponto é que ao final de janeiro desse ano (25/01/2022) saiu o decreto que dispõe sobre a cessão de uso de espaços em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a empreendimento de energia offshore (eólica). Ou seja, mais uma atividade que demandará espaço para operação, sendo que a NORMAN 11 estabelece que “embarcações de pesca, de esporte e recreio ou não SOLAS* não devem se aproximar a menos de 500 metros do perímetro do Parque Eólico Marítimo”. Em outras palavras, qualquer outro tipo de atividade ficará impedida de usar/ou passar por essa área.
Desta maneira a alocação de empreendimentos offshore não pode levar em conta somente o potencial da área para o projeto, mas também deve considerar todas as outras atividades e usos do local, sendo que no caso de eólicas offshore o impacto visual impacta a atividade de turismo.
É importante destacar que não vejo esse setor como vilão e/ou uma ameaça para o meio ambiente e sociedade (claro que tudo depende da maneira como esses projetos vão se desenvolver e o planejamento por trás). Na verdade, a atividade sendo incorporada de maneira planejada (base ecossistêmica) e estratégica pode vir a ajudar a diversificar a matriz energética brasileira (olha essa crise hídrica que estamos passando!), trazer novas tecnologias, desenvolver novas oportunidades e capacidades profissionais (assim como muitas outras atividades relacionadas a economia azul). É uma tecnologia baseada em uma fonte renovável, que pode vir a ajudar a desenvolver outras fontes limpas como o hidrogênio, por exemplo. Mas todo esse potencial por trás de empreendimentos eólicos offshore não pode vir a ser desenvolvido de maneira segmentada e setorial e com o marketing energia limpa e boa para todos. Energia renovável não significa sustentabilidade para o sistema onde irá se instalar, há outras questões sociais e ambientais fundamentais a serem adicionadas nessa complexa equação.
Nesse contexto, é importante ressaltar que tanto a missão realizada pelo IBAMA à EUROPA para entender a abordagem no desenvolvimento do setor de eólica offshore, como o Termo de Referência (TdR) de EIA/RIMA para complexos eólicos marítimos mencionam o Planejamento Espacial Marinho como uma forma para evitar potenciais conflitos com os diferentes usos e atividades que ocorrem ou podem vir a ocorrer no local, ressaltando novamente, auxiliando a desenvolver um novo setor da economia azul, considerando (com mesmo peso), os outros usos, atividades e usuários, bem como o ambiente e sua capacidade.
Outro relatório recente do Governo Federal desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA) traz uma discussão do PIB do mar Brasileiro, motivações sociais, econômicas e ambientais (link). O documento também ressalta a importância do PEM para o desenvolvimento da economia azul brasileira, sendo o destacando o PEM como um importante processo para garantir a saúde ambiental, o bem-estar social e o desenvolvimento sustentável econômico do mar brasileiro.
Alguns estados e regiões começaram a tomar frente e trazer a discussão do PEM para seus territórios (Ex. Ceará). Em março de 2022, foi publicada uma Cooperação para viabilizar, apoiar e acompanhar estudos técnicos voltados à implementação do Projeto-Piloto do PEM na região marinha do Sul. Essas iniciativas são importantíssimas para aprofundar as discussões e o processo de "aprender-fazendo", entendendo as particularidades do contexto brasileiro. Entretanto, é importante que haja uma lei e regulamentação para se ter claro o papel das diferentes instituições a nível federal, estadual e municipal. O PEM deve vir como um processo a somar a outros instrumentos políticos já existentes, como por exemplo, o Gerenciamento Costeiro, que abrange e delega até as 12 Milhas Náuticas (MN) ao estado o desenvolvimento desta política. Lembrando que as águas sob jurisdição brasileira se estendem até as 200MN.
Por fim, o ambiente marinho e costeiro vem sofrendo pressões antrópicas resultantes de uma gestão negligenciada e segmentada de seus recursos. Conflitos e impactos diretos e indiretos de diferentes atividades (terrestres e marinhas) neste ecossistema fragiliza e compromete a capacidade do ambiente em prover seus recursos ecossistêmicos, assim o impactando negativamente todo o sistema (social e econômico) dependente dele.
É necessário utilizar o momento que está sendo criado pelas eólicas offshore (como ocorreu em outros países que tiveram esse setor como um dos drivers para o desenvolvimento de seus planos – a exemplo da Alemanha e Holanda) para discutir e avançar com o Projeto de Lei da 6969/2013 sobre Planejamento do Espaço Marinho. Que durante esse processo, seja criado estrutura e real vontade política para promover a discussão de diferentes órgãos e instituições que trabalham no espaço marinho e os diferentes setores da sociedade para discutir os presentes e potenciais usos do ambiente marinho, minimizando conflitos e potencializando sinergias. Para assim, embarcarmos efetivamente no desenvolvimento sustentável e saudável dos nossos mares, co-desenhando de maneira integrada com os diferentes atores o futuro que queremos para o nosso oceano. O mundo já avançou, as discussões já estão em outro patamar e já possuímos conhecimento, tecnologia, equipe técnica e capacitada, exemplos de boas práticas, para fazer diferente.
*SOLAS: Embarcação enquadrada em uma das seguintes condições: a) de carga com arqueação bruta inferior a 500; b) de passageiros com arqueação bruta inferior a 500 e que não efetue viagem internacional; c) sem meios de propulsão mecânica; d) de madeira, de construção primitiva; e) embarcação de pesca; f) de comprimento de regra (L) menor que 24 metros. NORMAM 28
Sobre a autora:
Camila escolheu estreitar sua conexão com o mar através da sua carreira profissional. Como Oceanógrafa e Mestre em Planejamento do Espaço Marinho, vem contribuindo em projetos que visam a mudança do status quo, buscando o equilíbrio natureza-sociedade. Ela tem experiência em planejamento, gestão e conservação de áreas costeiras e marinha tanto no Brasil como no exterior.
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