Houve um tempo em que gaivotas voando ao lado de um navio em mar aberto significava terra quase à vista.
Hoje, um pequeno grupo de pessoas aglomerando-se do lado de fora da ponte de comando de um navio, apontando seus celulares para o alto, em uma tentativa desesperada de alcançar o sinal, provavelmente teria o mesmo efeito.
Depois de cinco longos meses no mar, a saudade amplia o desejo de conexão com entes queridos, especialmente após incontáveis desafios para o corpo, mente e, definitivamente, espírito.
Todos os anos, por décadas, uma frota de 6 ou mais navios pesqueiros ilegais dirigia-se às águas geladas da Antártica, com o intuito de retornar com as geladeiras abarrotadas das espécies de peixe: Patagonian e Antarctic Toothfish, mais comumente encontrados em cardápios de restaurantes sofisticados como Chlilean Seabass ou Merluza Negra.
Muitas vezes descrito como um continente de superlativos, a Antártica é a massa de terra mais meridional do mundo.
O continente é um deserto frio e seco, onde o acesso à água determina a abundância de vida. Embora muitos deles sejam microrganismos, o ecossistema terrestre contém milhares de espécies conhecidas, bem como formas de vida aquáticas.
Ambas as espécies de Merluza estão entre elas.
Animais de águas profundas e pré-históricos, predadores de topo de cadeia, com longevidade extensa e grande lacuna até a maturidade reprodutiva, são notórios por alimentar-se de filhotes da tão temida lula colossal entre outros, enquanto o contrário também se aplica. Juvenis e adultos dessa espécie de lula se alimentam de indivíduos adultos de Merluza.
A cadeia alimentar, entre muitos outros elementos, fazem da Antártica um dos ecossistema mais severos, porém mais frágeis do mundo.
Permitir que esse equilíbrio colapsasse não era uma opção para nós.
Em 8 de dezembro de 2014, 29 tripulantes zarparam de Wellington, Nova Zelândia, a bordo do navio MY Sam Simon, integrante da frota da ONG internacional de conservação marinha Sea Shepherd, com um equipamento de recolher redes um tanto rústico, roupas para frio extremo, plano de campanha estabelecido e 14,2 milhões de km² à frente para cobrir.
Seu navio irmão, o MY Bob Barker, havia deixado Hobart, na Tasmânia, apenas uma semana antes, alcançando a plataforma de gelo mais rapidamente.
A Sea Shepherd Conservation Society é famosa por interceptar embarcações que cometem crimes contra a vida marinha em alto mar, e desta vez não foi diferente.
Ou talvez houvesse um novo elemento nisso.
A Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) também estava interessada em capturar essas “embarcações-fantasmas” que pescam furtivamente Meluzas e outras espécies, depredando e deixando para trás rastros de destruição.
Construído na Noruega em 1969, o FV Thunder estava na “Lista Roxa” da Interpol havia 11 anos, e embora tenha sido apreendido em portos no Sudeste Asiático e Pacífico previamente, sempre encontrou maneiras de voltar ao mar, através de subornos ou zarpando na calada da noite, trocando de nome ao navegar.
O FV Thunder era um de seis.
E seus dias estavam chegando ao fim.
Em 17 de dezembro, após 10 dias de vigilância constante, a tripulação da ponte de comando do MY Bob Barker avistou um navio escondido atrás de um iceberg.
Foto ID: Check!
FV Thunder não era mais um mito.
E deu-se início a perseguição mais longa da história marítima.
O MY Bob Barker engajou na tarefa de seguir o FV Thunder, para garantir que voltassem ao porto e se rendessem às autoridades, enquanto o MY Sam Simon ficou para trás para recuperar a ainda desconhecida quantidade monstruosa de redes de pesca ilegal abandonadas pelo FV Thunder: 75 quilômetros gillnet armada de forma imprudente a 2000 metros de profundidade. A gillnet é uma faixa de rede que fica suspensa na coluna de água, os tamanhos das malhas são projetados para permitir que os peixes passem apenas a cabeça pela rede, mas não o corpo: as guelras do peixe ficam presas na rede enquanto o peixe tenta recuar para fora da rede, à medida que o peixe luta para se libertar, fica cada vez mais emaranhado.
Dia e noite.
Noite e dia.
Tempestades e neve.
2 equipes.
24 horas de trabalho contínuo.
Dezenas de milhares de vidas marinhas emaranhadas, afogadas, mortas. Entre elas, 50 toneladas de Merluza Negra e espécies variadas de fauna de fundo antártico. Os poucos animais vivos foram cuidadosamente desenroscados e devolvidos ao mar.
O que começou no dia de Natal de 2014, terminou quando entramos na terceira semana de janeiro de 2015.
Nossos corpos estavam cansados.
Nossos pés, nossas faces e nossas almas, congelados.
Ao puxarmos os últimos metros dos 75 quilômetros de rede, e o alívio substituindo o cansaço, nos demos conta de que ainda teríamos de distribuir essa rede igualmente ao redor do navio, pois ele estava levemente adernando, comprometendo sua estabilidade e otimização de performance na navegação.
E foram dias puxando, esticando, acomodando, aceitando.
Se havia qualquer dúvida em mim a respeito da eficiência de trabalhos em equipe, foram sanadas durante aqueles dias.
Lentamente, o calor de uma comemoração atrasada de Natal e Ano Novo colaborou muito para elevar o moral, e nossas mentes se afastaram dos desafios enfrentados nas semanas anteriores.
O FV Thunder, em uma tentativa vã de escapar do MY Bob Barker, viajou para o norte e chegou ao Oceano Índico.
Acompanhado pelo nosso navio, o MY Bob Barker persistiu na perseguição, e logo descobriríamos que o FV Thunder não estava apenas pescando ilegalmente, mas havia outros aspectos obscuros em suas operações.
A bordo do FV Thunder, havia 30 pescadores indonésios trabalhando em condições precárias, em regime de semi-escravidão, recebendo punições severas e até mesmo torturas.
Dia após dia. Mês após mês.
Lá estavam.
Não se tratava mais apenas da Antártica.
Foi maior.
Foi mais profundo.
Foi humano.
Da costa oeste da África, através do Cabo da Boa Esperança e finalmente atingindo o Oceano Atlântico, nos deparamos com uma série de imprevistos, mas também parcerias valiosas que renderam pequenas vitórias no decorrer da jornada: compartilhar amostras das redes com o chefe do departamento de crimes relacionados a pesca da Interpol, receber a bordo o jornalista investigativo do jornal americano The New York Times - Ian Urbina, que trabalhava em um artigo envolvendo a escravidão e exploração em alto-mar, e também a entrega das redes de pesca para a organização Parley TV, que mediou o envio das mesmas para a fábrica da Adidas, transformando-as em tênis de corrida.
Depois de meses do que parecia ser uma perseguição sem fim, incontáveis e-mails com governos, Interpol, direitos humanos e escritórios de agências ambientais, desafios físicos e mentais, tempestades e águas de pirataria, o FV Thunder finalmente encontrou seu destino.
Na madrugada de 6 de abril de 2015, o MV Bob Barker recebeu uma chamada de socorro.
O FV Thunder estava à pique.
Com medo de enfrentar as autoridades ao chegar a qualquer porto, o capitão do Thunder deliberadamente naufragou a embarcação, 'eliminando' qualquer evidência de captura ilegal (que eles possuíam em abundância na área de carga, nos freezers).
A tripulação de 40 homens (30 indonésios e 10 oficiais da Espanha, Chile e Portugal) foram resgatados com segurança pelo MY Sam Simon, e levados às autoridades em um pequeno arquipélago no Oceano Atlântico, São Tomé e Príncipe, localizado na África Ocidental.
Sendo a única brasileira a bordo, fui designada pelo capitão para mediar as negociações de resgate com as autoridades locais e a guarda-costeira, uma vez que o idioma principal do arquipélago é o português.
Conforme prometido pela Interpol, todos os pescadores indonésios foram interrogados e repatriados.
Já o capitão e dois dos oficiais foram posteriormente julgados e condenados por inúmeras atividades de pesca ilegal e crimes ambientais.
Três anos de prisão e US$ 17 milhões iria ensiná-los.
Quanto a nós ...
110 dias.
4 oceanos.
16.000 milhas náuticas.
59 bravas almas.
Um objetivo definido.
Muitos alcançados.
Esforços e sacrifícios tiveram que ser feitos a fim de trazer o equilíbrio.
A bondade e a compaixão se sobressaíram à ganância e soberba.
Diariamente, nos deparamos com escolhas. O que comer, vestir, falar. Com quem nos relacionar, como utilizar o nosso tempo, se recusar uma sacolinha plástica no mercado ou não.
Se hoje á mega-embarcações dizimando populações de peixes e outras espécies na “captura acidental” e utilizando mão de obra desumanizada, é porque háa um mercado, uma demanda, uma escolha.
Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou.
Margaret Mead escreveu isso. Ela sabia de coisas.
E isso, escrito em um pedacinho de papel colado na parede da minha pequena cabine, era um lembrete diário de que ações diárias são como gotas, gerando ondas no oceano.
In Memorian de Brian Race e Joseph N.
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