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Misoginia em cargos importantes: a violência política de gênero no Brasil contemporâneo

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    Colaboradoras da Liga
  • há 7 dias
  • 7 min de leitura

Por Marina Dale



A palavra “misoginia”, de origem grega (miseó = odiar / gyné = mulher), refere-se ao ódio, desprezo ou aversão às mulheres. Apesar dos avanços legais e institucionais conquistados nas últimas décadas, o desrespeito às mulheres continua sendo a regra — especialmente quando se trata da ocupação de espaços de poder e decisão. A violência política de gênero não atinge apenas mulheres eleitas, mas também ativistas e lideranças sociais, comprometendo diretamente a integridade da democracia.


A América Latina é reconhecida internacionalmente como pioneira na elaboração de marcos normativos para o enfrentamento à violência política contra as mulheres. Desde a Convenção Interamericana sobre os Direitos Políticos das Mulheres (1948) e a Convenção da ONU de 1953, que garantem igualdade de condições para o exercício de funções públicas, até os mais recentes dispositivos legais no Brasil, como a Emenda Constitucional nº 117/2022, a luta por equidade avança, mas encontra sérias barreiras estruturais.


No Brasil, o número de mulheres legisladoras ao nível nacional permanece abaixo da média regional americana e da média mundial, mesmo com normas que reservam cotas de candidaturas por gênero (Lei nº 12.034/2009), financiamento eleitoral, e tempo de propaganda (Lei nº 13.165/2015). Tais avanços são constantemente esvaziados por práticas como candidaturas fictícias de mulheres, e pela desigualdade no uso de recursos e visibilidade nas campanhas, onde candidatos homens seguem predominando.


A escalada da violência política de gênero no país está intimamente ligada aos ataques sistemáticos sofridos por instituições democráticas, marcados pelo avanço da pressão sobre políticas sociais e direitos humanos. Esse cenário se agrava com a disseminação de discursos conservadores e moralistas que atacam os direitos das mulheres, das populações LGBTQIAP+, negras, indígenas e outros grupos minorizados.


A misoginia, portanto, se estrutura sobre bases patriarcais, racistas e elitistas que definem quem deve ocupar o poder no Brasil: em geral, homens brancos, heterossexuais e de alto poder aquisitivo. Enfrentar a violência política de gênero, cujo impacto é mais perverso sobre aquelas que vivenciam múltiplas opressões interseccionadas, exige reconhecer essa estrutura e incorporar uma abordagem que considere o atravessamento de gênero, orientação sexual, raça, classe e outros marcadores sociais. Essa sobreposição intensifica os riscos de restrição ao exercício político das mulheres.


Uma das leis mais importantes dentro dessa pauta é a lei 14.192/2021 que, entre outras coisas, estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. A lei considera como violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher, seja ela candidata ou política eleita, ainda que não haja na academia uma definição consensual sobre violência política de gênero e de raça ou mesmo de violência política contra as mulheres. 


A lei considera crime qualquer ação que menospreze ou discrimine a condição de uma mulher, sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou dificultar a sua campanha eleitoral, ou o desempenho de seu mandato eletivo, prevendo uma pena de 1 a 4 anos de reclusão e multa, e, caso o crime seja praticado contra mulher com mais de 60 anos, gestante ou pessoa com deficiência, a pena pode chegar a 5 anos e 4 meses.


Tanto na condição de candidatas como já eleitas, as mulheres podem sofrer violência política de gênero por fatores como ameaças, interrupções frequentes de sua fala, desqualificação, exclusão de debates, questionamentos sobre sua aparência física e forma de vestir, questionamentos sobre suas vidas privadas, apropriação de suas ideias, entre outros.


Em 2024, o Governo Federal apresentou um Relatório intitulado “Diagnóstico e Propostas para o Enfrentamento à Violência Política contra as Mulheres no Brasil”, que reflete um conjunto de denúncias, recomendações e propostas colhidas durante o funcionamento do Grupo de Trabalho Interministerial de Enfrentamento à Violência Política contra as Mulheres (GTI), criado por decreto presidencial em abril de 2023.


O relatório reforça que a violência política contra as mulheres, mais do que atos isolados, constitui uma estratégia de controle sobre quem pode participar da arena pública e acaba por impedir que mulheres, especialmente as que representam lutas por justiça social e ambiental, exerçam plenamente seus direitos políticos. Entre os espaços mais críticos para a ocorrência dessa violência estão os municípios — contexto no qual diversas mulheres iniciam suas trajetórias políticas — em especial os pequenos, onde a atuação política tem menor visibilidade e menor cobertura midiática. O relatório também destaca que a internet é hoje uma das principais arenas de disseminação dessa violência, funcionando como meio de propagação de desinformação de gênero e discursos de ódio. A ausência de regulamentação efetiva das plataformas digitais e a fragilidade de instrumentos legais para conter essas práticas favorecem a impunidade.


Além da responsabilização, é preciso acolhimento e cuidado com a saúde mental das mulheres em atuação política. O desgaste emocional e psíquico gerado por esses ataques pode impactar diretamente a permanência das mulheres nos espaços de decisão e precisa ser tratado como questão coletiva e institucional.


Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado uma escalada da violência política de gênero, evidenciada por casos simbólicos e alarmantes. Um marco foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, processo no qual a misoginia se fez amplamente presente. A candidata ao Executivo em 2018, Manuela d’Ávila,  também foi alvo de ataques baseados em seu gênero. Como ela mesma afirmou, "a violência política de gênero é um instrumento utilizado para manter as mulheres longe da política".


Outro caso emblemático, que marcou profundamente o debate público, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018. Sua execução, motivada por sua atuação como mulher negra, favelada, defensora dos direitos humanos e da população LGBTQIA+, gerou uma comoção que impulsionou a criação de mecanismos legais para enfrentamento desse tipo de violência, como a aprovação pelo Congresso Nacional justamente da Lei nº 14.192/2021. Outros episódios recentes também contribuem para evidenciar a gravidade do problema, como o caso de Isa Penna, apalpada no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo em 2020, além das ameaças recorrentes enfrentadas por parlamentares como Érika Hilton e Talíria Petrone.


Mais recentemente, cenas de misoginia no Senado, em maio de 2025, reacenderam o alerta para a persistência da violência política de gênero — mesmo nas mais altas esferas do poder. A Ministra Marina Silva, referência internacional na pauta socioambiental, foi alvo de ataques. Com mais de quatro décadas de trajetória pública, Marina Silva é um símbolo de perseverança e compromisso com causas coletivas. Mulher, negra, mãe, de origem humilde, ex-seringueira, empregada doméstica e professora de história, rompeu múltiplas barreiras sociais para ocupar espaços de decisão.


Episódios como o do senador Plínio Valério (PSDB-AM), que afirmou desejar "separar a mulher da ministra" porque a ministra "não merecia respeito", ou a ordem do senador Marcos Rogério (PL-RO) para que a Ministra “se pusesse no seu lugar”, revelam a persistência de práticas profundamente misóginas no espaço público. 


Ainda assim, Marina Silva, no pleno exercício de suas funções, respondeu com firmeza: “Me ponho, sim, no meu lugar — o lugar de mulher, de agente pública, de cidadã que tem uma história de lutas pelo meio ambiente, por um país mais justo, mais sustentável, onde o machismo, o racismo e todo preconceito não encontrem abrigo” e “O que eles esperavam da minha parte era uma atitude de resignação, de concordância, de deixar desqualificarem a agenda ambiental. Me senti agredida, mas não intimidada.”


Apesar dos ataques, o trabalho da Ministra segue firme, com avanços recentes importantes na agenda ambiental, inclusive no bioma marinho-costeiro. No mês passado, o governo federal anunciou a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) Foz do Rio Doce, como parte dos compromissos de reparação da tragédia de Mariana. Foram também assinados os decretos que instituem a Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB) e a Estratégia Nacional para a Conservação e o Uso Sustentável dos Recifes de Coral (ProCoral).


Outros marcos foram a ampliação da APA Costa dos Corais, unidade de conservação federal localizada nos estados de Alagoas e Pernambuco, e foi assinado o decreto que institui o Planejamento Espacial Marinho (PEM) no país. Além disso, o país aderiu ao Mangrove Breakthrough e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima apresentou três compromissos voluntários na Terceira Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano (UNOC3), voltados à implementação do PEM, à meta 30x30 e  à inclusão de ações baseadas no oceano nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) e na EPANB.


A onda de solidariedade que emergiu diante desses ataques evidenciou tanto a recorrência dessa violência quanto a potência da resposta social coletiva. Fortalecer redes de apoio, escuta e reação pública é fundamental para garantir que mulheres como Marina Silva, e tantas outras que trilham caminhos na política, possam exercer suas funções com segurança, respeito e legitimidade.


Democracia sem mulheres não é democracia. A paridade é um requisito para um contexto democrático e mulher nenhuma pode ser silenciada, atacada ou desrespeitada. Como afirmou a Ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck: “A política precisa ser espaço de diálogo, escuta e construção democrática, não de violência, misoginia e intimidação. Ataques como esse não são só contra ela, são contra todas que ocupam espaços de poder. Atingem todas as mulheres que se dedicam à efetividade da democracia no país.



Fontes consultadas





Marina Dale é bióloga pela USP e mestranda pela UNICAMP, pesquisa manguezais em áreas protegidas no Brasil. Os seus principais trabalhos na área se resumem à atuação que teve na Secretaria Executiva do Diagnóstico Marinho-Costeiro da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), do qual é co-autora, e na APA Costa dos Corais, como bolsista de monitoramento de pesca artesanal e de manguezais. É a mais nova integrante do GT Newsletter, colaborando como produtora de conteúdo.

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